Páginas

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Falemos sobre Ahmad.

Ahmad é sudanês, foi professor por 8 anos, mora na Inglaterra há 24 e sabe mais de geografia que eu jamais saberei na vida. Mas até eu conversar com Ahmad, ele não passava de mais um "indiano" que trabalha em mais um "takeaway". 
Ahmad era mais um anônimo, e agora Ahmad é Ahmad.

Voltei de viagem hoje, com aquela larica das viagens intermináveis de trem e, claro, fui parar no podrão mais barato e gostoso aqui de Salford: o Paquistão, como os brasileiros chamam. No Paquistão nós compramos uma "meal for one" por três e cinquenta. Essa meal for one, no meu primeiro mês, era sinônimo de meal for um batalhão. Mas meu estômago altamente eficiente se acostumou rápido com o padrão britânico de gordice, e acomoda fácil fácil a pizza média, porção de batata frita com catchup e latinha de refrigerante do Paquistão. Meal for one, definitivamente... tudo meu, tudo meu!

Hoje, como eu dizia, eu fui parar no Paquistão, sozinha, e decidi puxar um papo com o "indiano" que trabalha lá, que já me conhece de cara (pra vocês terem ideia do quão saudável tem sido meu padrão de refeição). 
Papo vai papo vem, descobri que o indiano não é indiano: o indiano veio do Sudão. "Você sabe onde é o Sudão?", ele me perguntou. Botando o meu rabinho de estudante de Medicina entre as pernas, aquele rabinho que nunca gostou de estudar geografia no pré-vestibular, eu disse "é no Oriente Médio?". O sudanês soltou um risinho, pegou uma caneta e um papel daquele de embrulhar comida e desenhou um mapa. Fiquei sabendo que o Sudão fica na África (e aquela vergonha botando uma corzinha nas bochechas...). Comentei que o conhecimento dele era invejável e ele me disse que havia sido professor por 8 anos, mas ficou entediado. Ficou entediado e veio parar na Inglaterra... 
Humana e falível como sou, vi meus preconceitos aflorarem como se fosse primavera. Quem imaginaria que o cara que trabalha em um podrão assando pizza barata era na verdade um professor? Eu não. "Há quantos anos você mora na Inglaterra?", eu perguntei. Vinte e quatro. "Mas puxa vida!", exclamei, "isso é mais do que a minha idade!". E mais um preconceito foi sufocado pelas surpresas boas da vida, o preconceito dos sotaques fortes.

O sudanês perguntou meu nome, eu disse "Rayra" e, imaginem só, ele falou Rayra! Soltei aquela risada e falei "eba, você consegue falar meu nome! Ingleses não conseguem!". E de onde eu sou, ele queria saber, e eu disse que do Brasil.
Ele me contou da vontade de conhecer a América do Sul, do quanto ele adoraria conhecer meu país e perguntou se eu tinha um patrocinador. "Sim", eu disse, "o governo pagou e continua pagando por tudo". Ele ficou maravilhado com a constatação de que o Brasil é mesmo uma economia crescente, o que eu, em minha estúpida e nada patriótica convicção brasileira, contestei. "O Brasil é sim uma economia crescente, mas a gente não sente isso tanto quanto deveríamos", argumentei. 
Mas o que dizer do meu patrocínio para estudar na Europa de graça por um ano? 
Fiquei quieta na minha, e botei meu rabinho de brasileira ingrata entre as pernas, mais uma vez.

É, preciso admitir: o Brasil é uma economia crescente, e esse crescimento está sim se refletindo na minha vida. Há alguns meses eu escrevi um post sobre o investimento do CSF, que ainda está ressoando por aí, me trazendo comentários positivos e negativos. Não tenho respondido aos comentários porque não vejo porque continuar discutindo em cima desse mérito. Mas veio aqui, nesse texto, deixar claro que sim, eu vejo investimento em educação sendo feito pelo programa e, não, não é só manobra política. Pensei que tinha deixado isso claro no outro texto, mas aparentemente não. Minha opinião sobre as faltas do esclarecimento do dinheiro continuam as mesmas, entretanto. Não acredito que elas vão mudar tão fácil, mas também não creio que elas interferirão na concepção de que, com ou sem todo o dinheiro relatado na transparência.gov, carta de benefícios ou banco de dados que os valham, eu estou vivendo uma experiência incrível.
Aproveito a deixa para ofereceras minhas desculpas aos que ficaram incrivelmente ofendidos com tal polêmico post, mas também quero relembrar que, sendo este um blog para relato de experiências pessoais, continuarei escrevendo tudo o que eu penso (mas estou sempre aberta aos comentários e aprendendo com eles, especialmente se eles forem escritos educadamente). Meus pensamentos estão em constante renovação. Mudanças são necessárias, contanto que elas nos encaminhem para a evolução.

A minha pizza ficou pronta em vinte minutos e eu já ia me encaminhando para a saída do podrão quando me virei e perguntei "qual o seu nome?"- "Ahmad", ele me respondeu. 
E eu disse: "Então a gente se vê em breve, Ahmad! Boa noite pra você!"

E foi assim que o indiano que trabalha no paquistão, que conversa com um sotaque fortíssimo e tem os cílios mais pretos que eu já vi na vida se tornou nada mais nada menos que ele mesmo: Ahmad. 


3 comentários:

  1. Um prazer ler esse texto, Rayra. Realmente uma das maiores vantagens do intercâmbio é poder conhecer pessoas de todas as culturas e assim derrubar muitos dos nossos preconceitos. Brigada por compartilhar. Bjo

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom que você gostou! Brigada você pela visita e comentário! Beijo!

      Excluir
  2. Muito bom quando percebemos o mundo que nos cerca, vemos o quanto idotas são nossos preconceitos. Adorei o post, me fez refletir. Parabéns! Você voltou a conversar com ele?
    Beijos

    ResponderExcluir

Diz pra mim, o que você achou desse post?